Friday, January 29, 2010

Estadão - "Pérolas da autoria de João Gilberto"

Pérolas da autoria de João Gilberto
Ithamara Koorax e Juarez Moreira reúnem pela primeira vez num único álbum todas as composições do papa da bossa nova


27 de janeiro de 2010, página D6
Lauro Lisboa Garcia - O Estadao de S.Paulo
A VOZ E O VIOLÃO -

Legenda da foto (de Marcos Arcoverde/Agência Estado): "Primoroso trabalho da dupla recebeu elogios rasgados da imprensa especializada no exterior: "Bim Bom tá bombando!"

Ao deparar com o belo Bim Bom - The Complete João Gilberto Songbook, da cantora Ithamara Koorax com o violonista e guitarrista Juarez Moreira, é inevitável se perguntar por que ninguém pensou nisso antes: reunir num só álbum todas as (poucas e boas) 11 composições do papa da bossa nova. Produzido por Arnaldo DeSouteiro, o CD foi gravado em 2008 no Rio, concluído e lançado em outubro de 2009 no exterior. Como não há previsão de sair no Brasil, vale a pena comprar o importado, que está à venda no site www.amazon.com, a partir de US$ 10,60.

Brasileira com prestigiada carreira internacional, mais do que no país de origem, Ithamara diz que "depois de ter trabalhado com gênios como Tom Jobim, Luiz Bonfá, Hermeto Pascoal e João Donato" só faltava se dedicar à obra autoral de João Gilberto. "Não fazendo uma imitação, como tantos e tantas já fizeram, do jeito dele cantar. Mas trazendo à tona a sua criação como compositor, que acabou relegada a segundo plano. Injustamente. Porque, ouvindo uma música como Bim Bom, gravada por ele em 1958, como lado B do 78 rotações que tinha Chega de Saudade, você saca que a estética da bossa nova já estava inteirinha ali."

Para ela, "se a cabeça do João não funcionasse na base do Bim Bom, não teria existido a concepção que ele aplicou às músicas do Tom. Ou seja, não teria existido a bossa nova. Pelo menos não do jeito que a concepção estética do João Gilberto a moldou", explica. "Existe alguma outra lenda viva na música brasileira?", indaga a cantora, na longa entrevista concedida por e-mail ao Estado. Ithamara está em cartaz no Rio, apresentando esse repertório no Bar do Tom (Rua Adalberto Ferreira, 32, Leblon, tel. 21 2274-4022). Os dois últimos shows são sexta e sábado.

Ela diz que tinha vontade de realizar este projeto há muitos anos, mas "foi sendo atropelado por outros". "Canto Hô-Ba-Lá-Lá desde o meu primeiro show como cantora profissional, em 1990, no Rio Jazz Club. Na época, o arranjo era do Paulo Malaguti, meu pianista no início de carreira. Durante esse tempo todo, é claro que o arranjo foi se transmutando, já devo ter cantado esta música de umas 20 maneiras diferentes. E gravei de um jeito diferente do modo como canto atualmente nos shows. Isto é exercer a criatividade, isto é jazz!", diz a cantora.

Juarez já tinha assistindo a um show de Ithamara em 2005 e foi ter com ela depois para elogiá-la. A cantora, por sua vez, já conhecia os discos dele e "sabia que era o violonista mais indicado para gravar este songbook". "Não apenas pela altíssima qualidade dele como músico - o único, no Brasil, que segue a linha de Bonfá e Laurindo, e está no mesmo nível deles -, mas principalmente porque eu soube, através do meu produtor Arnaldo DeSouteiro, que ele era apaixonado pelo João, tocava de cor todas as obras deles. Era fundamental ter, como parceiro, alguém com esse grau de "commitment", de "comprometimento emocional" com o projeto."

Os dois gravaram tudo em dois dias no EG Studios, no Rio, "ao vivo", como se estivessem fazendo um show. "Não houve overdub de voz nem remendo de violão. Os únicos overdubs aconteceram nas músicas em que decidimos usar dois violões ou somar um violão e uma guitarra", afirma a cantora. "Resultou num trabalho muito espontâneo, que vem sendo unanimemente aclamado, com ótimas resenhas no New York Times, na Billboard, na Jazz Times de janeiro, 5 estrelas na Cashbox, enfim, o Bim Bom tá bombando!", festeja.

No encarte do CD, há comentários sobre cada faixa, não só com referências históricas sobre cada tema, mas com um ou outro dado sobre as novas gravações. Clássico pioneiro da bossa nova, Bim Bom é o ponto de partida do CD, mas a primeira composição gravada de João foi Você Esteve com Meu Bem?, por Marisa Gata Mansa em 1953. Outra das mais conhecidas é Hô-Bá-Lá-Lá, que aqui aparece em duas versões, uma delas com letra em inglês, de Aloysio de Oliveira. Minha Saudade (uma das três parcerias com Donato), ela já havia gravado duas vezes, nos CDs Wave 2001 (1996) e Bossa Nova Meets Drum & Bass (1998).

Alternando canções e temas instrumentais, como Um Abraço no Bonfá (solo de Juarez), Ithamara faz vocalises em outras que não têm letra, como Undiú, Valsa (Bebel) e a rara Glass Beads (No Coreto), gravada antes uma única vez por Donato em 1965. A cantora diz que os caminhos harmônicos vieram naturalmente trazidos ou sugeridos por Juarez, "que é um craque". "Em algumas músicas ele se aproximou bastante das gravações do João, no caso das músicas que ele (João) chegou a gravar. Em outras, como as três parcerias com o Donato, o Juarez reprocessou tudo à maneira dele, fez um trabalho genial. A performance dele em Minha Saudade é uma aula de violão!"

A única interpretação que ela diz ter premeditado foi a de Forgotten Places (Coisas Distantes). "Fiquei imaginando como Shirley Horn a cantaria. Por isso, gravamos num andamento bem lento, que me permite saborear cada sílaba", diz a cantora, que está gravando dois novos álbuns simultaneamente, um em Los Angeles, outro em Nova York. "Mas ambos são projetos secretos, como foi o Bim Bom."

VIRTUOSE SIM, MALABARISTA NÃO

ESSENCIAL: Para Ithamara, maior desafio de gravar o álbum foi, como João Gilberto na essência, "fazer o difícil parecer simples, fácil; fazer o que é complexo soar descomplicado, natural. Não bastasse isso, ainda é preciso ser sutil, cantar suavemente, freasear de forma criativa, lidar com alterações rítmicas e sincopado, tudo isso ao mesmo tempo numa fração de segundos. Nem dá tempo de raciocinar. Ou você sabe fazer ou não."

Ela que se derreteu com o elogio de um crítico da DownBeat, que a chamou de "brazilian butterfly" (borboleta brasileira) e disse que ela é "sempre deliciosamente imprevisível", por outro lado alfineta alguns conterrâneos. "Os críticos brasileiros mais limitados adoram dizer que faço malabarismos vocais. Não há afirmação alguma mais equivocada. Paganini, Liszt, Oscar Peterson não eram malabaristas, eram virtuoses. Chick Corea, John McLaughlin, Michel Camilo e Paco de Lucia são virtuoses, não são malabaristas. Pelé, Garrincha, Ronaldinho são virtuoses. O malabarista fica no circo ou no sinal de trânsito", compara. "Sou uma virtuose. Se sustento uma nota agudíssima por longo tempo, se emendo frases sem respirar por mais de um minuto, é porque tenho técnica", defende-se.

"Não preciso fazer esforço para isso. É uma coisa natural. Se precisasse me esforçar e quisesse atrair atenção pela excentricidade, poderia ser chamada de exibicionista. Mas faço isso porque eu sei. Não tenho culpa de ter estudado e continuar estudando, não tenho culpa de ser CDF aplicada. Não tenho culpa do que está na moda no Brasil é justamente não saber cantar ou não ter voz. Exibicionista, pra mim, é cantora que fica coçando saco no palco, cuspindo no público ou se jogando do palco em cima da platéia. Mas isso a mídia acha "muderno"... "
- Lauro Lisboa Garcia
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Versão integral da entrevista:

1. Bem, muita coisa que eu gostaria de saber já está esclarecida no encarte do CD, mas de qualquer forma é curioso por que ninguém pensou nisso antes - reunir as composições de João Gilberto num só álbum? Quando você tomou a decisão? E quando se decidiu imaginou o projeto já para ser com o violão de Juarez?

IK: Existe alguma outra lenda-viva na música brasileira? Depois de ter trabalhado com gênios como Tom Jobim, Luiz Bonfá, Hermeto Pascoal e João Donato, só faltava me dedicar à obra autoral do João Gilberto. Não fazendo uma imitação, como tantos e tantas já fizeram, do jeito dele cantar. Mas trazendo à tona a sua criação como compositor, que acabou relegada à segundo plano. Injustamente. Porque, ouvindo uma música como "Bim Bom", gravada por ele em 1958, como lado B do 78 rotações que tinha "Chega de Saudade", você saca que a estética da bossa nova já estava inteirinha ali. "Chega de Saudade" era avançada para aquela época, chocou todo mundo. Mas o minimalismo de "Bim Bom" ainda era muito mais avançado, muita gente preferiu fingir que não tinha ouvido, porque realmente não conseguiu entender. Tem gente que não entendeu até hoje...(risos) Se a cabeça do João não funcionasse na base do "Bim Bom", não teria existido a concepção que ele aplicou às músicas do Tom. Ou seja, não teria existido a bossa nova. Pelo menos não do jeito que a concepção estética do João Gilberto a moldou.

Conheci João Gilberto através de "Canção do Amor Demais", de Elizeth Cardoso. Meus pais adoravam o disco e eu cresci ouvindo aquelas músicas. Conheço de cor todos os arranjos do Tom Jobim. Por sincronicidade, quando iniciei minha carreira profissional, em 1990, Elizeth se tornou minha madrinha artística. Depois o Tom gravou comigo em 1994. E agora eu celebro meus 20 anos de carreira reverenciando o João!

Tinha vontade de realizar este projeto há muitos anos, mas ele foi sendo atropelado por outros. Eu canto "Hoba-lá-lá" desde o meu primeiro show como cantora profissional, em 1990, no Rio Jazz Club. Na época, o arranjo do "Hoba-lá-lá" era do Paulo Malaguti, meu pianista no início de carreira. Durante esse tempo todo, é claro que o arranjo foi se transmutando, já devo ter cantado esta música de umas vinte maneiras diferentes. E gravei de um jeito diferente do modo como canto atualmemente nos shows. Isto é exercer a criatividade, isto é jazz! "Minha Saudade" eu já tinha gravado duas vezes, nos CDs "Wave 2001" (1996) e "Bossa Nova Meets Drum & Bass" (1998). Além disso, no CD "Obrigado Dom Um Romão", que gravei na Suiça em 2008 e também foi lançado mundialmente, menos no Brasil, gravei várias músicas do repertório do João, inclusive "Aos Pés da Cruz" e "Estate", com uma letra em português feita especialmente para mim pela escritora e novelista Anamaria Moretzsohn.

Juarez já tinha assistindo a um show meu em 2005 e veio me elogiar depois. Eu já conhecia os discos dele e sabia que era o violonista mais indicado para gravar este songbook. Não apenas pela altíssima qualidade dele como músico - o único, no Brasil, que segue a linha de Bonfá e Laurindo, e está no mesmo nível deles - mas principalmente porque eu soube, através do meu produtor Arnaldo DeSouteiro, que ele era apaixonado pelo João, tocava de cor todas as obras deles. Era fundamental ter, como parceiro, alguém com esse grau de "commitment", de "comprometimento emocional" com o projeto. Eu e o Juarez gravamos tudo em dois dias, "ao vivo" no estúdio, como se estivéssemos fazendo um show. Não houve overdub de voz nem remendo de violão. Os únicos overdubs aconteceram nas músicas em que decidimos usar dois violões ou somar um violão e uma guitarra. Resultou num trabalho muito espontâneo, que foi lançado dia 18 de outubro no exterior e vem sendo unanimemente aclamado, com ótimas resenhas no New York Times, na Billboard, na JazzTimes de janeiro, 5 estrelas na Cashbox, enfim, o "Bim Bom" tá bombando!

E eu adoro trabalhar com guitarristas! Larry Coryell tocou junto com o Bonfá no "Almost in Love" e arrasou. A gente se ama. Mas no "Serenade in Blue" eu chamei o Jay Berliner, que eu cresci ouvindo em discos do Charles Mingus e do Milt Jackson, então eu tinha o sonho de tocar com ele. No "Love Dance" o McLaughlin era o cara certo, e ele botou pra foder, fez na música "Man Alone", que dura dez minutos, uma das performances mais geniais que eu já ouvi em toda a minha vida, entrelaçando a guitarra com a minha voz. No "Wave 2001" eu gravei com os cinco melhores guitarristas do Japão. Agora gravei com o Juarez Moreira no "Bim Bom" e tenho excursionado pela Europa com uma nova fera na minha banda, o Rodrigo Lima, que toca violão e guitarra. Então eu adoro essa troca, essa diversão, porque tenho horror à monotonia. O maior elogio que eu já recebi foi de um crítico da DownBeat que começou a resenha sobre o "Brazilian Butterfly" dizendo que eu era uma cantora "sempre deliciosamente imprevisível". Cheguei a ter um orgasmo com essa frase! (rssss)

2. Apesar de alguns especialistas terem destacado e analisado mais atentamente certas composições de João - como "Bim Bom", "Ho-ba-la-la" e "Undiú" - ele nunca foi tão valorizado como compositor, até porque que o violonista e intérprete estão, por motivos óbvios, em maior evidência. Até no livro "Bim Bom", de Walter Garcia, Caetano Veloso comenta que "Bim Bom" é considerada "demasiado simples" e "modesta", mas que essa canção é tão manifesto da bossa nova quanto "Desafinado" e "Samba de Uma Nota Só". Enfim, acho que não é o caso de comparar o intérprete com o compositor, mas na sua visão, o que as composições de João têm de mais interessante ou talvez desafiador para uma cantora?

IK: Lauro, vou fazer um "copy & paste" aqui, pq esta explicação detalhada eu dei na entrevista para o site JazzWax (veja abaixo, please). Gostaria apenas de adicionar que o grande desafio foi fazer o mesmo que o João faz na essência: fazer o difícil parecer simples, fácil; fazer o que é complexo soar descomplicado, natural. Não bastasse isso, ainda é preciso ser sutil, cantar suavemente, freasear de forma criativa, lidar com alterações rítmicas e sincopado, tudo isso ao mesmo tempo numa fração de segundos. Nem dá tempo de raciocinar. Ou você sabe fazer ou não sabe.

Os críticos brasileiros mais limitados adoram dizer que eu faço malabarismos vocais. Não há afirmação alguma mais equivocada do que essa. Paganini, Liszt, Oscar Peterson não eram malabaristas, eram virtuoses. Chick Corea, John McLaughlin, Michel Camilo e Paco de Lucia são virtuoses, não são malabaristas. Pelé, Garrincha, Ronaldinho são virtuoses. O malabarista fica no circo ou no sinal de trânsito. Eu sou uma virtuose. Se eu sustento uma nota agudíssima por longo tempo, se eu emendo frases sem respirar por mais de um minuto, é porque eu tenho técnica. Não preciso fazer esforço para isso. É uma coisa natural. Se eu precisasse me esforçar e quisesse atrair atenção pela excentricidade, poderia ser chamada de exibicionista. Mas faço isso porque eu sei. Não tenho culpa de ter estudado e continuar estudando, não tenho culpa de ser uma CDF aplicada. Não tenho culpa do que está na moda no Brasil é justamente não saber cantar ou não ter voz. Exibicionista, pra mim, é cantora que fica coçando saco no palco, cuspindo no público ou se jogando do palco em cima da platéia. Mas isso a mídia acha "muderno"...

Deixando bem claro: NÃO TENHO NADA CONTRA QUEM NÃO SABE CANTAR OU NÃO TEM VOZ. CONTINUEM FELIZES ENGANANDO OS OUTROS. SÓ NÃO QUERO E NÃO ACEITO SER JULGADA COM BASE NUMA INVERSÃO DE VALORES. NÃO ACEITO SER ESCULHAMBADA PORQUE SEI CANTAR, TENHO RECURSOS VOCAIS E NÃO DESAFINO. É UM ABSURDO QUE, NO BRASIL, COMPETÊNCIA E TALENTO TENHAM SE TORNADO MOTIVO DE "PUNIÇÃO".

Agora o que eu falei na entrevista para o site JazzWax: He (Joao Gilberto) is tottaly unique! I don't feel I'm able to translate his whole concept into words. But
it's something magical, that really transcends music. The way his
harmonies move, the way he develops his harmonic changes is unparelled,
remains unmatched. He wrote only 11 songs, at least those were the only ones
that he and other artists previously recorded. And I decided to put all of
them together in one CD. Of course I know that Gilberto has created some
other pieces, some pretty tunes that he calls guitar miniatures. But he says
they are "unfinished business," and would never allow me or anyone else to
record them,
because he is an obsessive perfectionist and considers such unrecorded songs
as mere sketches, not finished songs. There's a lovely instrumental waltz he
played live only once during one of his latest Japanese tours, but it
remains untitled and unpublished. So, I wouldn't bother him insisting to
record it. But I hope he'll do it himself in his next album.

I also would like to add that Gilberto is such a creative interpreter that
he becomes an unofficial "co-author" of any song he choses to sing. He says
that's the reason he never felt compelled to write hundreds of songs was
because he knew hundreds of great songs that already existed and that he
felt that he could improve or re-do on his own way, bringing them to his own
style. Look what he has done with "Estate" for example! Before Gilberto's
recording on "Amoroso", nobody knew of it in the USA. Not even in Italy it
was a popular song. Joao turned it into an universal jazz standard! It's a
proof that he does musical miracles!!! (laughs)

Plus: the song "Bim Bom" was originally recorded in 1958 as the Side B of a
78rpm single that had Jobim's "Chega de Saudade" ("No More Blues") on Side
A. "Chega de Saudade", considered the first bossa nova hit, is beautiful.
But "Bim Bom" was much more intriguing and modern, too much ahead of its
time. That's why most of the people who were not musicians didn't pay
attention to it at that time. They couldn't understand such a "strange
song".
Another wonderful tune, "Voce Esteve Com Meu Bem", was composed in 1953, and
still sounds unbelievably modern.

3. "Você Esteve Com Meu Bem", se não me falha a memória, foi gravada por Mariza Gata Mansa em ritmo de samba-canção e pelo próprio João também, quando ainda empostava a voz à maneira de Orlando Silva. Você e Juarez fizeram algo mais próximo da bossa. Gostaria que você comentasse a decisão sobre essa versão e de outras em que por ventura tenha procurado um caminho diferente do original.

IK: Ao que eu saiba, o João nunca a gravou. Só conheço as gravações da Mariza, em 1953, com arranjo do genial Maestro Gaya, e do Caetano. Não tivemos a preocupação de procurar caminhos diferentes, tudo foi muito espontãneo e natural. Mas é claro que eu já tinha "estudado" as músicas há muito tempo. E o meu método é o seguinte: fico dias e dias ouvindo uma canção até decora-la. Aí passo mais uma semana cantando-a diariamente no meu home studio, do meu jeito, esquecendo a gravação original que eu tinha aprendido. Gravo tudo e vou comparando, pra ver se estou melhorando, se a música está fluindo. Quando eu acho que está legal - e isso pode demorar até dois anos - eu testo a música num show, faço uma surpresa para mim mesma. Levo a partitura pros músicos e digo: "hoje vou cantar essa aqui". Se o resultado me agrada, eu continuo cantando ao vivo e começo a pensar na possibilidade de grava-la. Se eu acho que ainda não chegou a um resultado satisfatório, tiro do repertório e volto ao laboratório.

4. Várias faixas do seu CD ou foram gravadas antes uma vez só, pelo próprio João, ou têm outras gravações muito raras e praticamente desconhecidas. Lembrei-me que Bebel Gilberto disse que foi muita coragem dela gravar "Bim Bom" no ano passado, já que João "tem o jeito dele". Gravar uma canção em que João tenha deixado sua marca é sempre passível de comparação. No caso de as composições serem dele, acho que o peso ainda é maior. Você, como admiradora confessa de João, mas que também tem uma marca de interpretação muito pessoal, teve de alguma maneira a preocupação ou o cuidado de estudar o que ele já tinha feito para encontrar um caminho harmônico diferente?

IK: Não. Os caminhos harmônicos vieram naturalmente trazidos ou sugeridos pelo Juarez, que é um craque. Em algumas músicas ele se aproximou bastante das gravações do João, no caso das músicas que ele (João) chegou a gravar. Em outras, como as três parcerias com o Donato, o Juarez reprocessou tudo à maneira dele, fez um trabalho genial. A performance dele em "Minha Saudade" é uma aula de violão! A única interpretação que eu premeditei foi a de "Coisas Distantes", porque fiquei imaginando como Shirley Horn a cantaria. Por isso gravamos num andamento bem lento, que me permite saborear cada sílaba. Veja como eu canto as frases "namoro ao portão" e "em meu peito aquela agitação", que você vai sacar o que eu quis fazer.

5. Sobre "Bim Bom". Como já tinha dito no e-mail anterior, essa canção ganhou três regravações em 2009 - a sua, a de Bebel e outra de Adriana Calcanhotto, que colocou a batida de samba-reggae do Olodum. Além de ter sido lançada no outro lado de "Chega de Saudade", em 1958, portanto, também é um marco do lançamento da bossa nova, ela dá título a seu álbum. Tom Jobim chegou a usar "Bim Bom" como exemplo da contribuição rítmica da bossa nova. À parte a importância histórica, que observação mais profunda você, que a gravou em ritmo mais acelerado, faria da canção nessa questão da combinação do jogo rítmico entre a voz e o violão?

IK: Acho que o Juarez saberá responder isso melhor. Permita-me apenas uma pequena correção: "Bim Bom" ganhou três lançamentos em 2009. Porque o meu disco foi gravado em 18 e 19 de março de 2008. As gravações de Bebel e Adriana foram feitas depois. Não é opinião, é uma constatação.

6. A curtíssima letra da canção começa com "é só isso o meu baião e não tem mais nada não". Como te falei, no documentário "O Homem Que Engarrafava Nuvens", Caetano Veloso comenta que Gilberto Gil tinha se referido a "Bim Bom" como algo revelador da influência do baião na bossa nova. Depois João compôs "Undiú", que também é um baião. Nos livros consta que ele compôs "Bim Bom" inspirado no ritmo do andar das lavadeiras baianas. Agora, você vê mesmo uma relação da bossa nova com o baião na origem da batida de João?

IK: Lauro, vc está impossível...! Que pergunta difícil! Juarez, me salva... (rssss)

7. Não custa perguntar - João ouviu seu CD?

IK: Claro! Mas isso é segredo. Tenho que respeitar a privacidade do João.

8. Você vem fazer show com esse repertório em São Paulo? Além das canções do CD o que mais do repertório de João tem no show?

IK: Adoraria, mas ainda não fui convidada. No Rio, onde estou em cartaz durante todas as sextas e sábados de janeiro no Bar do Tom, com casa lotada, o repertório muda a cada noite. Estou cantando pela primeira vez músicas como "Smoke Gets In Your Eyes" e "Aviso aos Navegantes". Quando o Miele aparece para dar canja - e ele já me deu esta honra duas vezes -, cantamos juntos "Baubles, Bangles and Beads". Quando ele não vai, eu troco por "Days of Wine and Roses". Tenho incluido também "Human Nature", lançada pelo Michael Jackson no "Thriller", e que eu faço num arranjo bem jazzístico, inspirado na versão do Miles Davis que era apaixonado por esse tema.

9. Como será seu novo álbum? Sai este ano? Aliás, há previsão de lançamento de "Bim Bom" no Brasil? (comprei o CD importado).

IK: Ainda não há previsão de lançamento do "Bim Bom" no Brasil. Estou gravando dois novos discos simultaneamente. Um em Los Angeles, outro em Nova Iorque. Mas ambos são projetos secretos, como foi o "Bim Bom". Quando gravamos o disco, apenas João, Juarez, o produtor Arnaldo DeSouteiro e o engenheiro de som Geraldo Brandão sabiam que se tratava de um songbook do João. Fizemos um pacto de não comentar nada nem com familiares nem com amigos, para não vazar e estragar a surpresa. Gostaria de pedir que você citasse que eu e o Juarez doamos integralmente nossos royalties para o Dizzy Gillespie Fund do Englewood Hospital, de Nova Jersey. Este dinheiro permite o tratamento de músicos que não possuem seguro-saúde e estão necessitados de exames, tratamentos ou internações. É importante revelar isso porque a qualquer hora vai surgir no Brasil um espírito de porco dizendo que eu e o Juarez resolvemos "faturar" na fama do João. E este é um projeto feito por puro amor e admiração, sem a menor intenção de lucro. Nem eu nem o Juarez precisamos disso, temos carreiras e reputações sólidas. "Bim Bom" é fruto unicamente do nosso amor pela obra de João Gilberto.

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